quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Como convém aos mortais

Noite no mar, de Caspar David Friedrich

Aqui - como convém aos mortais -
tudo é divino.
E a pintura embriaga mais
que o próprio vinho.

(Sophia de Mello Breyner)


Não sei pintar, e tenho pena. O meu mundo não é feito de cores e de formas mas de palavras (só de palavras) e as palavras são coisas difíceis, muito difíceis de dizer.

Repara: "era uma vez a noite no mar."

Mas se souberes pintar fechas-te com as tuas telas e os pincéis e as tintas e depois nós dizemos "olha. aqui está a noite no mar", mas não é bem assim, não é só isso: é que aqui está a noite no mar que é a noite que trazes em ti. Porque ao pintares não pintaste a noite (como podias, tão grande?), não pintaste o mar: antes as marcas que o mar em ti soube deixar, as cores que a noite te andou pintando (e por isso nós dizemos, se te conhecermos: esta é bem a tua "noite no mar", tão igual à tua "duas raparigas beijando-se à chuva". Esta é uma coisa que só tu podias fazer)

Com as palavras não é tão fundo, sabes? Não é tão vivo. Repara, eu digo: noite (a palavra) e digo: mar. E depois tu lês-me e não sabes nada de mim e pensas naquela vez em que andaste descalço. Tu lês-me e reencontras-te a ti. Mas eu queria era mostrar-te a cicatriz do meu corpo, e tenho que fazer mais, que dizer "era uma vez a noite no mar, e nessa noite ele disse que a verdade era como a morte embarcada". Não sei. Com as palavras, sabes, não é tão breve. Imagina que o músico tocava a sua harpa e nós recordávamos o som suavíssimo do violino, que tristeza para ele que gastou anos na escola das harpas, que mudez. E não me digas que ambos têm cordas.

Com as palavras não sei pintar, sabes? Porque ver é uma coisa parada e as palavras fazem força para começar a andar, todas as palavras trazem em si "era uma vez". Outro exemplo, tu pintas a feiticeira a dançar, e durante séculos eu podia ficar a ver o gesto esguio das mãos, a curva impossível do véu tão negro. E ao fim dos séculos ainda o pé da feiticeira não assentou no chão de poeira, não a tocaram as mãos ávidas do amante. Mas se eu disser com palavras "então a feiticeira dançou, e foi como se o véu fizesse a curva impossível..." tudo em ti requer a continuação, o resto da história: "e então o amante falou, como se quisesse voltar atrás".

É difícil contar uma história parada. Tão difícil ver as palavras, deixar dizer as coisas que somos.
Por isso escuta, sabes? Escuta a canção da batalha, a negligente elevação do corvo. Escuta as cores que as palavras são: isto que digo é a noite no mar.

Aprende devagar a dança exactíssima do fogo. Como convém aos mortais, e os barcos.

23 comentários:

Unknown disse...

Oh é um quadro que mesmo pintado de letras -me- é bonito. :)

Jo disse...

Casimiro, a tua escrita é um assombro... com as palavras não é tão fundo, certo, mas com as tuas é suficientemente fundo para a gente mergulhar e ser a custo que de lá sai.

(eu também tenho pena de não saber pintar...)

beijo*

bat_thrash disse...

Que bela imagem!
Também acho dificil lidar com palavras: uma vírgula fora de hora ou a falta dela deita tudo abaixo.Nem sempr conseguimos explicitar tudo que vem de dentro de nós através das palavras.
Também tenho pena de não saber pintar.
A pintura tem o poder de nos fazer escutar uma história que ficou parada, mas registrada.
Bat Kiss.

Ana Beatriz Frusca disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Beatriz Frusca disse...

A pintura congela e imortaliza momentos importantes em nossa vida e na história. A fotografia também tem esse poder, mas fotografia qualquer um pode clicar e registrar o momento. A arte em geral tem o poder de imortalizar o homem, momentos, fatos...
Tu tens muito bom gosto para associar palavras e imagens.
2dão, excluí o meu blogue, mas não deixarei te vir aqui te visitar.
Gosto muito de teus escritos e de ti também.
Beijos.*

Ana Beatriz Frusca disse...

És um esgrimista das palavras!
:)

Ruela disse...

Uma imagem pode valer mil palavras...mas palavras sentidas fazem-nos imaginar mil imagens...



Abraço.

Casimiro Ceivães disse...

Anita: bem vinda sempre :)

Mariazinha, ah. Não sei que diga, mas um beijo também!

Bat, olá! A maneira como escolhemos as palavras - é isso que é importante. Mas é como se a partir de certa altura elas falassem por si. Como se as palavras nos fossem ditas a nós pelas coisas que vemos. E depois, olha! Explicitámos o que andava "cá dentro"... :)

Biazinha!!! LOL. Também gosto muito de ti. Oh, passas cá sempre, sim? Beijo*

Ruela, sim, e isso vindo de ti deixa-me orgulhoso... Abraço!

Unknown disse...

Belas palavras, Ruela!

Casimiro,
uma musiquita que anda por aí, e por mim também...

http://www.youtube.com/watch?v=2lEv8Gbgd_I&feature=related

Casimiro Ceivães disse...

Oh Anita, mas se eu não me dou bem com o sol!

Obrigado !

Unknown disse...

Oh o Sol és tu, tolo (carinhosamente)!... Não te dás bem contigo? Bem, isso já não é comigo...

Unknown disse...

Faz-me lembrar alguma coisa...

"Nome do mundo, diadema
Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trémulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida
- aterrada pela riqueza -
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anónimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra

Nome do mundo, diadema."
Herberto Helder

Unknown disse...

Ah agora ocorreu-me... a pintura é como se fosse um mar sempre ali. A escrita assemelha-se a um rio que rebentou de uma fonte e que corre... corre... até onde cada um deixar que o leve... :)

Klatuu o embuçado disse...

Não tenho paciência para esta atrasada mental!

Unknown disse...

Klatuu,

recebo-o como um grande elogio... ser atrasada mental é mesmo um grande desejo meu, de modo a que regresse ao que está antes da mente, à minha verdadeira essência, o sentimento.
Quanto à paciência, não se sinta só, bem-vindo ao clube.

akasha disse...

Junto-me ao clube dos que não tem paciência com atrasados mentais, pois a Senhorita Anita está a se insinuar acintosamente para cima de Casimiro sem ao menos saber se:
1- Se ele é um homem disponível
2- Se o Sr Casimiro a corresponde(estamos a ver que não, pelo contrário, ao lê-lo percebemos seu constrangimento diante das investidas inistentes e inconvenientes da Senhorita).
Cara Anita, viva uma vida real e se estás a procura de alguém vá à luta, mas não fique a se prestar a esse papel ridículo de ficar se oferecendo a um homem que nem sabes se é ou não casado, pois estás sendo motivo de risos a chacota.
E tenho dito!

Unknown disse...

Posso não estar a viver a vida real, mas há quem consiga ver como real o virtual.

Unknown disse...

E ó Casimiro, não sei nem tenciono saber o que guardas ou aguardas, mas uma coisa é certa, estás bem guardado. De quê é que resta saber - mas também não por mim.

Casimiro Ceivães disse...

Anita, de facto não penso que seja atrasada mental. É apenas uma viborazita de pequeno calibre. Volte para os emplumados que é o seu lugar e desande daqui.

Adeus.

Lord of Erewhon disse...

Eu acho que é uma lagarta de couve, não chega a víbora, falta-lhe a coroa e o capelo... No fundo, a Anita tem é um problema alimentar... :)

Unknown disse...

Certamente, Casi-A-migo.

akasha disse...

"...Pra que tornar as coisas tao sombrias
na hora de partir
por que nao se abrir?
se o que vale é o sentimento
e nao palavras
quase sempre traiçoeiras
e é bobeira se enganar
melhor nem tentar...
afinal, a gente sofre de teimoso
quando esquece o que é prazer
adeus também foi feito pra se dizer
bye bye so long very well
adeus também foi feito pra se dizer..."
(Guilherme Arantes)

Clarissa disse...

Casimiro, até que enfim alguém põe essa senhora no sítio quemerece e que a merece, entre os emplumados :)
Um abraço

P.S. O texto,belo como sempre.