Não sei pintar, e tenho pena. O meu mundo não é feito de cores e de formas mas de palavras (só de palavras) e as palavras são coisas difíceis, muito difíceis de dizer.
Repara: "era uma vez a noite no mar."
Mas se souberes pintar fechas-te com as tuas telas e os pincéis e as tintas e depois nós dizemos "olha. aqui está a noite no mar", mas não é bem assim, não é só isso: é que aqui está a noite no mar que é a noite que trazes em ti. Porque ao pintares não pintaste a noite (como podias, tão grande?), não pintaste o mar: antes as marcas que o mar em ti soube deixar, as cores que a noite te andou pintando (e por isso nós dizemos, se te conhecermos: esta é bem a tua "noite no mar", tão igual à tua "duas raparigas beijando-se à chuva". Esta é uma coisa que só tu podias fazer)
Com as palavras não é tão fundo, sabes? Não é tão vivo. Repara, eu digo: noite (a palavra) e digo: mar. E depois tu lês-me e não sabes nada de mim e pensas naquela vez em que andaste descalço. Tu lês-me e reencontras-te a ti. Mas eu queria era mostrar-te a cicatriz do meu corpo, e tenho que fazer mais, que dizer "era uma vez a noite no mar, e nessa noite ele disse que a verdade era como a morte embarcada". Não sei. Com as palavras, sabes, não é tão breve. Imagina que o músico tocava a sua harpa e nós recordávamos o som suavíssimo do violino, que tristeza para ele que gastou anos na escola das harpas, que mudez. E não me digas que ambos têm cordas.
Com as palavras não sei pintar, sabes? Porque ver é uma coisa parada e as palavras fazem força para começar a andar, todas as palavras trazem em si "era uma vez". Outro exemplo, tu pintas a feiticeira a dançar, e durante séculos eu podia ficar a ver o gesto esguio das mãos, a curva impossível do véu tão negro. E ao fim dos séculos ainda o pé da feiticeira não assentou no chão de poeira, não a tocaram as mãos ávidas do amante. Mas se eu disser com palavras "então a feiticeira dançou, e foi como se o véu fizesse a curva impossível..." tudo em ti requer a continuação, o resto da história: "e então o amante falou, como se quisesse voltar atrás".
É difícil contar uma história parada. Tão difícil ver as palavras, deixar dizer as coisas que somos.
Por isso escuta, sabes? Escuta a canção da batalha, a negligente elevação do corvo. Escuta as cores que as palavras são: isto que digo é a noite no mar.
Aprende devagar a dança exactíssima do fogo. Como convém aos mortais, e os barcos.