segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Vê:

pintura de William Adolphe Bouguereau (1898)

Vê:

Enigma e coroação do silêncio - da elevação que no silêncio habita.

Na verdade, a terra inteira guarda e aguarda. Nos céus, a sereníssima lição do corvo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Como convém aos mortais

Noite no mar, de Caspar David Friedrich

Aqui - como convém aos mortais -
tudo é divino.
E a pintura embriaga mais
que o próprio vinho.

(Sophia de Mello Breyner)


Não sei pintar, e tenho pena. O meu mundo não é feito de cores e de formas mas de palavras (só de palavras) e as palavras são coisas difíceis, muito difíceis de dizer.

Repara: "era uma vez a noite no mar."

Mas se souberes pintar fechas-te com as tuas telas e os pincéis e as tintas e depois nós dizemos "olha. aqui está a noite no mar", mas não é bem assim, não é só isso: é que aqui está a noite no mar que é a noite que trazes em ti. Porque ao pintares não pintaste a noite (como podias, tão grande?), não pintaste o mar: antes as marcas que o mar em ti soube deixar, as cores que a noite te andou pintando (e por isso nós dizemos, se te conhecermos: esta é bem a tua "noite no mar", tão igual à tua "duas raparigas beijando-se à chuva". Esta é uma coisa que só tu podias fazer)

Com as palavras não é tão fundo, sabes? Não é tão vivo. Repara, eu digo: noite (a palavra) e digo: mar. E depois tu lês-me e não sabes nada de mim e pensas naquela vez em que andaste descalço. Tu lês-me e reencontras-te a ti. Mas eu queria era mostrar-te a cicatriz do meu corpo, e tenho que fazer mais, que dizer "era uma vez a noite no mar, e nessa noite ele disse que a verdade era como a morte embarcada". Não sei. Com as palavras, sabes, não é tão breve. Imagina que o músico tocava a sua harpa e nós recordávamos o som suavíssimo do violino, que tristeza para ele que gastou anos na escola das harpas, que mudez. E não me digas que ambos têm cordas.

Com as palavras não sei pintar, sabes? Porque ver é uma coisa parada e as palavras fazem força para começar a andar, todas as palavras trazem em si "era uma vez". Outro exemplo, tu pintas a feiticeira a dançar, e durante séculos eu podia ficar a ver o gesto esguio das mãos, a curva impossível do véu tão negro. E ao fim dos séculos ainda o pé da feiticeira não assentou no chão de poeira, não a tocaram as mãos ávidas do amante. Mas se eu disser com palavras "então a feiticeira dançou, e foi como se o véu fizesse a curva impossível..." tudo em ti requer a continuação, o resto da história: "e então o amante falou, como se quisesse voltar atrás".

É difícil contar uma história parada. Tão difícil ver as palavras, deixar dizer as coisas que somos.
Por isso escuta, sabes? Escuta a canção da batalha, a negligente elevação do corvo. Escuta as cores que as palavras são: isto que digo é a noite no mar.

Aprende devagar a dança exactíssima do fogo. Como convém aos mortais, e os barcos.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Aqui

Imagem: sobre uma fotografia de Katia Shausheva

Como são as coisas quando ninguém as vê? Mas às vezes o nosso olhar parece nada acrescentar, nada excluir: como se não estivéssemos lá, as coisas mostram-se sozinhas, terríveis na sua apresentação nua. Revelação intacta da beleza, que é o grito mutilado dos anjos.

Às vezes as coisas param, e assim é o mistério do tempo: este instante não esteve sempre aqui. Mas as coisas paradas chamam coisas, onde devia haver um gesto há o silêncio; e levanta-se dos interstícios do mundo uma avidez que é embrião de demónios.

Se as almas forem embora as coisas gritam.


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Canto nómada


Passamos, e as nossas sombras.

Na retirada vermelha dos cavalos deixadas para trás as cidades de pimenta e barro: terras calcinadas de luz, guardam os nossos mantos o teu sabor de aurora. Canto baixo dos ventos, dos grandes ventos da manhã. Inclemência do bronze! Passamos, e o olhar queimado das mulheres.

Passamos, e as nossas sombras na entoação das canções claras. Perfumes da terra vã, exaltação dos pássaros: à nossa frente o traço fino dos falcões.

Inconstância do bronze!

Ao fim da tarde os cestos, frutas quentes no colo dos homens sentados: vimos a honra das cidades na oração frágil do profeta. Turbulência inútil do jasmim, que adornavas os ombros das filhas do rei. E os frescos da sala das armas: no palácio de jade pisámos as cartas de jogar dos guardas mortos.

Passamos, e as nossas sombras. Aclamamos-te, oh Sol! No teu desprezo a preservação dos mundos.

domingo, 14 de setembro de 2008

Canção

Slave ship, de William Turner

Se não fosse o incêndio das águas como escutar a canção do homem.

Passamos, a nossa sombra.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Dedicação

Naufrágio ao luar, de Caspar David Friedrich

Voo agreste do corvo, olhar nocturno do falcão: no naufrágio dos mundos guardo e aguardo.

Mistério da elevação, que faz do silêncio dedicação da pedra.