Iluminura medieval francesa: a caça com falcão
Ver o mundo com os olhos da noite; ver a noite com os olhos do falcão. De certa forma, tudo é já o passado inexorável, o altíssimo voo da memória maior.
Dito de outro modo: dorme, como o vento passa.
Béatrice Romand em Le genou de Claire (Eric Rohmer, 1970)
'Le genou de Claire', ou 'O joelho de Clara', é um filme. Esta rapariga da imagem não é a Clara embora apareça no filme. Então porque está aqui? Frágil é ela e as águas. Vêem? Não.
O joelho de Clara, sim. Mas que declara o joelho?
Dantes, as Beatrizes. Agora, "no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso".
Escólio: a teoria da comunicação é um ramo promissor da angelologia.
Die Nacht, de Karl Friedrich Schinkel (1781 - 1841)
Confundem ainda as máquinas a noite e a treva, e nessa pequena e provisória falha está o essencial da nossa táctica de resistência, da nossa esperança de libertação. Disto, ao contrário de outros assuntos maiores, não é ainda necessário fazer segredo; este reservar-se-á para o que concerne à acção, isto é, para as formas de tornar, no visível, visíveis – e assim, senão impotentes, ao menos momentaneamente enfraquecidos – os tronos e as dominações que encarceraram os mundos da vida.
Estamos conscientes da incompatibilidade básica do nosso programa com os meios disponíveis de expressão que não sejam os usados pelos mestres da poesia.
Maine, por Brian Arnold
Sim, andamos às voltas na noite e consumidos pelo fogo. E no entanto os olhos mostram só o deserto do mar. Como poderei persuadir-te de que é por isso que a revolução é tão difícil? Seria preciso que soubesses das mãos crispadas da pedra, do vulto tranquilo de um homem: mas cada mundo tem as suas próprias evidências.
Nota: In girum imus nocte et consumimur igni é o título de um filme de Guy Debord (1978)
- Sim, disse o Génio, três desejos. Podes ser rico, posso levar-te a Tumbuctu ou a Samarcanda, podes ser califa ou vizir ou um homem sábio. Três desejos.
- Bem, disse o Aladino, não sei se quero ir a Samarcanda e de certeza não gostava de ser um homem sábio. Podes dar-me uma taça de morangos com natas?
E o Génio fez aparecer uma taça de morangos com natas.
- Que bom, disse o Aladino, com colher e tudo. De repente fiquei com medo de ter de gastar o segundo desejo a pedir uma colher. Não era preciso ser de prata, sabes?
- És um homem estranho, respondeu o Génio. Da última vez que me pediram morangos foi mais difícil, porque ainda não havia morangos no mundo. Tens mais dois desejos.
E o Génio fez uma vénia (uma génia, pensou o Aladino, que gostava de brincar com as palavras).
- Podes dar-me uma capa? Está um bocadinho fria a noite, e queria dar um passeio. Negra, sabes, com uma fivela prateada. Sempre quis ter uma assim.
O Génio fez aparecer uma capa mais negra que a própria noite, com uma fivela onde se podia ver um dragão que ao mesmo tempo era uma flor e ao mesmo tempo era uma canção de Inverno.
- Linda! Disse o Aladino, baixinho. Obrigado, Génio. Com isto não volto a ter frio.
- Dois desejos, respondeu o Génio, inclinando-se de novo. Muito fáceis até agora. Pensa bem no terceiro, que é o último que te posso conceder.
- Faz com que todos digam a verdade esta noite, disse o Aladino como se não tivesse a certeza. Todos e eu também, só esta noite. Mesmo que seja uma verdade terrível.
- Nunca me tinham pedido o fim do mundo, respondeu o Génio, e também falou como se hesitasse.
Veio um e disse:
- Mundo visível, repousas na noite imprecisa como uma criança serena. Mas a noite - de que mundos além dos mundos vem a secreta luz, a inacessível luz que nos permite vê-la?
E outro:
- Pobre criança, tão pequena e já cercada pelos véus, já vencida pelas janelas fechadas. Ainda não sabes, e já te prenderam; ainda não falas, e já te calaram.
E um terceiro:
- A técnica de colocação dos vidros não é a mais moderna.
Imagem: sobre uma fotografia de Katia Shausheva
Como são as coisas quando ninguém as vê? Mas às vezes o nosso olhar parece nada acrescentar, nada excluir: como se não estivéssemos lá, as coisas mostram-se sozinhas, terríveis na sua apresentação nua. Revelação intacta da beleza, que é o grito mutilado dos anjos.
Às vezes as coisas param, e assim é o mistério do tempo: este instante não esteve sempre aqui. Mas as coisas paradas chamam coisas, onde devia haver um gesto há o silêncio; e levanta-se dos interstícios do mundo uma avidez que é embrião de demónios.
Se as almas forem embora as coisas gritam.
Naufrágio ao luar, de Caspar David Friedrich
Voo agreste do corvo, olhar nocturno do falcão: no naufrágio dos mundos guardo e aguardo.
Mistério da elevação, que faz do silêncio dedicação da pedra.