sexta-feira, 5 de março de 2010

Iluminura medieval francesa: a caça com falcão

Ver o mundo com os olhos da noite; ver a noite com os olhos do falcão. De certa forma, tudo é já o passado inexorável, o altíssimo voo da memória maior.

Dito de outro modo: dorme, como o vento passa.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Outro anagrama

Béatrice Romand em Le genou de Claire (Eric Rohmer, 1970)

'Le genou de Claire', ou 'O joelho de Clara', é um filme. Esta rapariga da imagem não é a Clara embora apareça no filme. Então porque está aqui? Frágil é ela e as águas. Vêem? Não.

O joelho de Clara, sim. Mas que declara o joelho?

Dantes, as Beatrizes. Agora, "no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso".

Escólio: a teoria da comunicação é um ramo promissor da angelologia.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Anagrama

Die Nacht, de Karl Friedrich Schinkel (1781 - 1841)

Confundem ainda as máquinas a noite e a treva, e nessa pequena e provisória falha está o essencial da nossa táctica de resistência, da nossa esperança de libertação. Disto, ao contrário de outros assuntos maiores, não é ainda necessário fazer segredo; este reservar-se-á para o que concerne à acção, isto é, para as formas de tornar, no visível, visíveis – e assim, senão impotentes, ao menos momentaneamente enfraquecidos – os tronos e as dominações que encarceraram os mundos da vida.

Estamos conscientes da incompatibilidade básica do nosso programa com os meios disponíveis de expressão que não sejam os usados pelos mestres da poesia.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

In girum imus nocte et consumimur igni

Maine, por Brian Arnold

Sim, andamos às voltas na noite e consumidos pelo fogo. E no entanto os olhos mostram só o deserto do mar. Como poderei persuadir-te de que é por isso que a revolução é tão difícil? Seria preciso que soubesses das mãos crispadas da pedra, do vulto tranquilo de um homem: mas cada mundo tem as suas próprias evidências.

Nota: In girum imus nocte et consumimur igni é o título de um filme de Guy Debord (1978)

Tempo

Monte de Santa Tecla, Galiza (autor desconhecido)

Gastamo-nos, pedra. Tu e eu.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Officium Tenebrae

[com alteração de cores, pormenor da Crucifixão,
de Matthias Grunewald (1470-1528)]

Agora, só faltam as palavras.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Canção de Inverno

All alone, pintura de Iman Maleki

- Sim, disse o Génio, três desejos. Podes ser rico, posso levar-te a Tumbuctu ou a Samarcanda, podes ser califa ou vizir ou um homem sábio. Três desejos.

- Bem, disse o Aladino, não sei se quero ir a Samarcanda e de certeza não gostava de ser um homem sábio. Podes dar-me uma taça de morangos com natas?

E o Génio fez aparecer uma taça de morangos com natas.

- Que bom, disse o Aladino, com colher e tudo. De repente fiquei com medo de ter de gastar o segundo desejo a pedir uma colher. Não era preciso ser de prata, sabes?

- És um homem estranho, respondeu o Génio. Da última vez que me pediram morangos foi mais difícil, porque ainda não havia morangos no mundo. Tens mais dois desejos.

E o Génio fez uma vénia (uma génia, pensou o Aladino, que gostava de brincar com as palavras).

- Podes dar-me uma capa? Está um bocadinho fria a noite, e queria dar um passeio. Negra, sabes, com uma fivela prateada. Sempre quis ter uma assim.

O Génio fez aparecer uma capa mais negra que a própria noite, com uma fivela onde se podia ver um dragão que ao mesmo tempo era uma flor e ao mesmo tempo era uma canção de Inverno.

- Linda! Disse o Aladino, baixinho. Obrigado, Génio. Com isto não volto a ter frio.

- Dois desejos, respondeu o Génio, inclinando-se de novo. Muito fáceis até agora. Pensa bem no terceiro, que é o último que te posso conceder.

- Faz com que todos digam a verdade esta noite, disse o Aladino como se não tivesse a certeza. Todos e eu também, só esta noite. Mesmo que seja uma verdade terrível.

- Nunca me tinham pedido o fim do mundo, respondeu o Génio, e também falou como se hesitasse.

(escrito em Março de 2006)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Hoje


Window, de Majid Arvari (Iran): pintura de 2006

Veio um e disse:

- Mundo visível, repousas na noite imprecisa como uma criança serena. Mas a noite - de que mundos além dos mundos vem a secreta luz, a inacessível luz que nos permite vê-la?

E outro:

- Pobre criança, tão pequena e já cercada pelos véus, já vencida pelas janelas fechadas. Ainda não sabes, e já te prenderam; ainda não falas, e já te calaram.

E um terceiro:

- A técnica de colocação dos vidros não é a mais moderna.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Vê:

pintura de William Adolphe Bouguereau (1898)

Vê:

Enigma e coroação do silêncio - da elevação que no silêncio habita.

Na verdade, a terra inteira guarda e aguarda. Nos céus, a sereníssima lição do corvo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Como convém aos mortais

Noite no mar, de Caspar David Friedrich

Aqui - como convém aos mortais -
tudo é divino.
E a pintura embriaga mais
que o próprio vinho.

(Sophia de Mello Breyner)


Não sei pintar, e tenho pena. O meu mundo não é feito de cores e de formas mas de palavras (só de palavras) e as palavras são coisas difíceis, muito difíceis de dizer.

Repara: "era uma vez a noite no mar."

Mas se souberes pintar fechas-te com as tuas telas e os pincéis e as tintas e depois nós dizemos "olha. aqui está a noite no mar", mas não é bem assim, não é só isso: é que aqui está a noite no mar que é a noite que trazes em ti. Porque ao pintares não pintaste a noite (como podias, tão grande?), não pintaste o mar: antes as marcas que o mar em ti soube deixar, as cores que a noite te andou pintando (e por isso nós dizemos, se te conhecermos: esta é bem a tua "noite no mar", tão igual à tua "duas raparigas beijando-se à chuva". Esta é uma coisa que só tu podias fazer)

Com as palavras não é tão fundo, sabes? Não é tão vivo. Repara, eu digo: noite (a palavra) e digo: mar. E depois tu lês-me e não sabes nada de mim e pensas naquela vez em que andaste descalço. Tu lês-me e reencontras-te a ti. Mas eu queria era mostrar-te a cicatriz do meu corpo, e tenho que fazer mais, que dizer "era uma vez a noite no mar, e nessa noite ele disse que a verdade era como a morte embarcada". Não sei. Com as palavras, sabes, não é tão breve. Imagina que o músico tocava a sua harpa e nós recordávamos o som suavíssimo do violino, que tristeza para ele que gastou anos na escola das harpas, que mudez. E não me digas que ambos têm cordas.

Com as palavras não sei pintar, sabes? Porque ver é uma coisa parada e as palavras fazem força para começar a andar, todas as palavras trazem em si "era uma vez". Outro exemplo, tu pintas a feiticeira a dançar, e durante séculos eu podia ficar a ver o gesto esguio das mãos, a curva impossível do véu tão negro. E ao fim dos séculos ainda o pé da feiticeira não assentou no chão de poeira, não a tocaram as mãos ávidas do amante. Mas se eu disser com palavras "então a feiticeira dançou, e foi como se o véu fizesse a curva impossível..." tudo em ti requer a continuação, o resto da história: "e então o amante falou, como se quisesse voltar atrás".

É difícil contar uma história parada. Tão difícil ver as palavras, deixar dizer as coisas que somos.
Por isso escuta, sabes? Escuta a canção da batalha, a negligente elevação do corvo. Escuta as cores que as palavras são: isto que digo é a noite no mar.

Aprende devagar a dança exactíssima do fogo. Como convém aos mortais, e os barcos.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Aqui

Imagem: sobre uma fotografia de Katia Shausheva

Como são as coisas quando ninguém as vê? Mas às vezes o nosso olhar parece nada acrescentar, nada excluir: como se não estivéssemos lá, as coisas mostram-se sozinhas, terríveis na sua apresentação nua. Revelação intacta da beleza, que é o grito mutilado dos anjos.

Às vezes as coisas param, e assim é o mistério do tempo: este instante não esteve sempre aqui. Mas as coisas paradas chamam coisas, onde devia haver um gesto há o silêncio; e levanta-se dos interstícios do mundo uma avidez que é embrião de demónios.

Se as almas forem embora as coisas gritam.


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Canto nómada


Passamos, e as nossas sombras.

Na retirada vermelha dos cavalos deixadas para trás as cidades de pimenta e barro: terras calcinadas de luz, guardam os nossos mantos o teu sabor de aurora. Canto baixo dos ventos, dos grandes ventos da manhã. Inclemência do bronze! Passamos, e o olhar queimado das mulheres.

Passamos, e as nossas sombras na entoação das canções claras. Perfumes da terra vã, exaltação dos pássaros: à nossa frente o traço fino dos falcões.

Inconstância do bronze!

Ao fim da tarde os cestos, frutas quentes no colo dos homens sentados: vimos a honra das cidades na oração frágil do profeta. Turbulência inútil do jasmim, que adornavas os ombros das filhas do rei. E os frescos da sala das armas: no palácio de jade pisámos as cartas de jogar dos guardas mortos.

Passamos, e as nossas sombras. Aclamamos-te, oh Sol! No teu desprezo a preservação dos mundos.

domingo, 14 de setembro de 2008

Canção

Slave ship, de William Turner

Se não fosse o incêndio das águas como escutar a canção do homem.

Passamos, a nossa sombra.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Dedicação

Naufrágio ao luar, de Caspar David Friedrich

Voo agreste do corvo, olhar nocturno do falcão: no naufrágio dos mundos guardo e aguardo.

Mistério da elevação, que faz do silêncio dedicação da pedra.